A traição de Israel

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 31/05/2024)

Acabou-se a factura do Holocausto: os judeus de hoje acabaram com ela, cobrindo de vergonha o nome de Israel.


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Estes não são as vítimas da shoah, os sobreviventes dos campos de extermínio nazis que, desprovidos de casas, de pátria e de esperança, se dirigiram no pós-guerra para o território da Palestina em busca de um lar para o povo judaico a que pudessem chamar pátria, numa epopeia relatada, entre outros, no romance “Exodus”, de Leon Uris. Estes não são os judeus que puseram de pé o sonho sionista de Theodor Herzl, depois concretizado por David Ben-Gurion. Estes não são os judeus vindos da Europa, África, Rússia, América, para então construírem de raiz um país novo sobre as areias do deserto, irrigando-o de água e de agricultura, povoando-o de kibutzes que eram um modelo de socialismo original e replicado em toda a organização de um Estado solidário e democrático, desde a Saúde ou o Ensino até às Forças Armadas, que logo garantiram a sobrevivência e independência do novo país. Estes não são os que fundaram o Estado de Israel que, não obstante as divergências políticas cedo ligadas à sua fundação, o mundo se habituou a admirar ou a invejar. Não: estes são os seus filhos, netos ou bisnetos. E o que eles fizeram e fazem com a herança recebida foi traí-la. Estes israelitas de hoje são os traidores da memória do Holocausto e do projecto sionista no que ele tinha de legítimo e de louvável.

Muito antes de Gaza, já Israel tinha perdido toda a legitimidade política para poder ser aceite como um Estado respeitador do direito internacional e caucionar os fundamentos da sua própria criação. Setenta anos de desobediência arrogante a resoluções do Conselho de Segurança da ONU, de ocupação sistemática e planeada, de terras roubadas aos palestinianos na Cisjordânia (onde hoje vivem em colonatos ilegais 800 mil judeus), de abusos de toda a ordem sobre os palestinianos, de paulatina expulsão dos palestinianos de Jerusalém, de transformação de Gaza no maior campo de concentração do mundo, do impulso dado à criação do Hamas, como forma de minar o poder dos moderados da Autoridade Palestiniana, conduziram àquilo que Guterres disse, com toda a razão, serem os antecedentes do 7 de Outubro. E, depois disso, os 36 mil mortos de Gaza, uma Força Aérea que bombardeia tendas de refugiados, um Exército que ataca dentro de enfermarias de hospitais e despeja mísseis sobre carrinhas de ajuda alimentar, valas comuns onde as outrora gloriosas FDI enterram centenas de civis, mulheres e crianças, ou o embargo deliberado de água e alimentos para também matar pela fome, pela sede e pelas doenças, tudo isso faz hoje de Israel um Estado criminoso que nenhum critério de decência pode absolver. Acabou-se a factura do Holocausto: os judeus de hoje acabaram com ela, cobrindo de vergonha o nome de Israel.

Olhamos para as imagens dos prédios de Gaza arrasados pelas bombas de uma tonelada e vemos as imagens do gueto de Varsóvia destruído pelos nazis: são iguais ou piores. E não vale a pena virem com o argumento de que o Hamas é o culpado porque usa a população civil como escudo: claro que sim, como o faziam os resistentes judaicos no gueto de Varsóvia, os russos em Estalinegrado ou qualquer força militar acossada dentro de uma cidade — ou esperavam que o Hamas saísse dos túneis e das casas e enfrentasse os tanques e a aviação israelita em campo aberto?

Mas também olhamos para os rostos das crianças esfomeadas em Gaza e vemos os mesmos rostos de Treblinka ou Auschwitz e então perguntamo-nos: como é que os descendentes dos que passaram pelo Holocausto são capazes disto? Como é que falam com os seus antepassados, como é que não estremecem de vergonha?

Porque a pior vergonha não é ver Netanyahu e o ministro da Defesa Gallant alvo de um pedido de captura do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra e crimes contra a Humanidade ou ver Israel alvo de sentenças, que não cumpre, do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). A pior vergonha é perceber que todo o povo de Israel, ou quase todo, está solidário com eles, solidário com um Governo de criminosos. As manifestações que vemos em Jerusalém ou Telavive não são contra o massacre em Gaza, não são a pedir uma solução de paz definitiva ou, muito menos, a pedir a solução de dois Estados. São a pedir uma trégua provisória que permita a libertação de todos os reféns e depois a continuação da operação em Gaza — se possível, com a expulsão de todos os 2,3 milhões de palestinianos que lá estão para o Sinai egípcio, para a Jordânia ou para Marte, o sonho e a “solução final” a que Israel aspira. Se em Gaza as Forças Armadas conduzem uma estratégia de genocídio controlado, na Cisjordânia ocupada os colonos civis não estão parados: 700 palestinianos foram já mortos às suas mãos desde 7 de Outubro e também eles atacam carrinhas que vão levar comida a Gaza cercada. Não há inocentes ali, não há vozes em Israel hoje, como sempre houve no passado, a demarcar-se desta bebedeira colectiva de ódio, de cegueira e de arrogância.

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Se o TIJ — que é um órgão das Nações Unidas cujas sentenças são de cumprimento obrigatório pelos membros da ONU — ordena que cessem imediatamente as operações em Gaza, Israel responde dois dias depois com o massacre de 50 civis a que chama “incidente trágico”. Se o procurador do TPI pede mandados de captura contra membros da direcção do Hamas e do Governo israelita, Israel escandaliza-se por porem um país “democrático”(?) ao nível de uma organização terrorista, como se os mortos pelo terror distinguissem a origem política da bomba que os matou. Se três países europeus decidem, ao fim de 74 anos de uma resolução da ONU, reconhecer o Estado da Palestina, o incendiário ministro dos Estrangeiros de Israel declara-os aliados do Hamas. E se alguém, em algum lado do mundo, seja numa universidade americana ou num jornal português, no uso do mais elementar exercício de decência e de indignação, se manifesta com o que vê em Gaza, logo saltam os muitos defensores de Israel com a estafada chantagem intelectual de confundir indignação moral com anti-semitismo e deterem-se só um passo antes de os acusarem de nazismo. Até já vi com os meus olhos o que não acharia possível: o deputado europeu do CDS, e parece que professor de direito internacional, afirmar na televisão que era discutível que o ataque da Força Aérea israelita ao consulado do Irão em Damasco, em que morreram oito pessoas, fosse ilegal.

Na televisão também vi há dias o ministro Paulo Rangel explicar a posição portuguesa no conflito e por que razão este não é o momento para reconhecer o Estado palestiniano. Não consegui enxergar uma só razão válida, tirando o facto de nunca ser o momento certo, desde que em 29 de Novembro de 1947 as Nações Unidas partilharam o território da Palestina, sob mandato britânico, entre um Estado palestiniano e um Estado de Israel. O Estado de Israel existe desde que Ben-Gurion o proclamou em 14 de Maio de 48 e logo foi reconhecido por inúmeros países. O da Palestina continua à espera do “momento oportuno”. Valha-nos que pelo menos — ao contrário dos americanos e de vários parceiros europeus, campeões dos direitos humanos e da indústria do armamento — não fornecemos armas para a matança de Gaza.

2 O 32º país na escala de apoios à Ucrânia, Portugal foi também o 32º país visitado por Volodymyr Zelensky na sua incansável demanda por armas para a guerra. Em contraste com o nosso sempre exuberante Presidente, gostei de ver a pose comedida de Zelensky, um misto de cansaço e humildade de quem precisa de ajuda, própria de um Presidente de um país invadido e em guerra. A sua aura nasceu de um suposto diálogo com Biden de que não há testemunhas, quando o Presidente americano se terá oferecido para o tirar da Ucrânia no início da guerra e ele terá dito que não precisava de boleia mas de armas. Não creio que a história seja verdadeira, mas serviu para a propaganda criar a imagem adequada para a opinião pública ocidental e à qual Zelensky ficou preso para sempre. Talvez demasiadamente preso, em prejuízo de uma alternativa à continuação de uma guerra de que a Ucrânia e a Europa serão sempre, seja qual for o desfecho, as vítimas certas. Agora Zelensky aposta muito numa “cimeira de paz” na Suíça, onde estarão todos os apoiantes da Ucrânia. Menos o outro lado. Faz-me lembrar, com os intervenientes trocados, os Conselhos Mundiais para a Paz e Cooperação, que a URSS então promovia enquanto espalhava mísseis pelos países do Pacto de Varsóvia.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

8 pensamentos sobre “A traição de Israel

  1. O Miguelito sempre igual, a inventar ao correr da brisa, enquanto beberrica um gin tónico na esplanada do Gigi. Para saber o que é o sionismo é melhor aprender com quem estudou. Ide ler o José Goulão no AbrilAbril!

  2. Pois, é devia também ler o livro que serviu de base ao filme “A Lista de Schindler” para ver o que é que os pobres coitados internados nos campos de concentração chamavam aos que já estavam mesmo a morrer de fome. “MUÇULMANOS”. Ou seja, aquela gente desprezava de tal modo os muçulmanos que achava que eram todos uns inprestáveis, uns mortos de fome, com quem nunca iriam certamente partilhar a terra prometida.
    Foram esses pobres coitados sobreviventes, coitadinhos, sem casa, sem terra e sem esperanca que expulsaram de vez os ingleses mediante um terrorismo sem paralelo até então e de seguida fizeram a nakba expulsando das suas casas e terras 700 mil palestinianos e matando nunca saberemos quantos. Porque eles eram o povo eleito, porque eles eram superiores, porque eles nunca partilharam a terra que lhes tinha sido dada por Deus com aqueles árabes sujos.
    E a história das areias do deserto é outro mito que temos obrigação de conhecer. O mapa delineado pelos britânicos dos dois estados dava aos recém chegados a maioria das terras férteis e aos outros a maioria terras inférteis ou montanhosas.
    Por isso os israelitas actuais são os legítimos herdeiros dessa gente racista, com complexo de superioridade baseada num livro que terá sido escrito há mais de quatro mil anos.
    São os legítimos herdeiros dos que fizeram a primeira nakba. Dizendo também coisas horrendas como quando Golda Meir dizia que eram os palestinianos que os estavam a obrigar a matar as suas crianças.
    Parece aquele marido que diz a mulher que espanca sem do nem piedade que a culpa é dela porque se porta mal.
    Quanto aos defensores de Israel defenderiam o próprio Diabo se fosse este a ter o poder económico que os sionistas teem. Tendo em conta o que vai em Gaza nem temos o direito de nos preocupar com eles.
    Já agora, a União Soviética fazia o mesmo que faziam os Estados Unidos que ao mesmo tempo que pregavam paz e democracia faziam a guerra no Vietname, enchiam a América Latina de ditaduras nefastas e espalhavam mísseis da Alemanha a Inglaterra. Era a Guerra Fria e não se tirava de uns para por nos outros.
    Em resumo, há gente que devia ir voltar a estudar.

  3. Cito:

    “Estes não são os judeus vindos da Europa, África, Rússia, América, para então construírem de raiz um país novo sobre as areias do deserto, irrigando-o de água e de agricultura, povoando-o de kibutzes que eram um modelo de socialismo original e replicado em toda a organização de um Estado solidário e democrático, desde a Saúde ou o Ensino até às Forças Armadas, que logo garantiram a sobrevivência e independência do novo país.”

    Para não variar, uma no cravo e outra na dentadura:

    “(…) para então construírem de raiz um país novo sobre as areias do deserto, irrigando-o de água e de agricultura (…)”

    Vai-se a ver, os 750 mil palestinianos expulsos em 1947/48 das suas casas e terras viviam num deserto, de acordo com Miguel Sousa Tavares. Será que ele não sabe que essa é precisamente a tese da ladroagem nazionista: “Um povo sem terra para uma terra sem povo”? Como é que MST pode continuar a insistir na tese mentirosa de que os colonos sionistas apenas ocuparam um deserto desabitado, que regaram e “fizeram florir”, quando sabe que desse “deserto” foram expulsos quase todos os habitantes da época, não menos de 750 mil? A verdade verdadinha é que as terras e casas roubadas aos palestinianos pelo nazionismo racista, supremacista e colonialista eram deserto mas era a ponta de um corno. Os “sonhadores bem-intencionados” que expulsaram esses 750 mil, para alegadamente, nos kibbutzim, construírem uma utopia socialista nas terras dos que escorraçaram ou massacraram, foram os precursores, os pais espirituais, os modelos, os desbravadores do caminho hoje trilhado pelos Nazinyahu, Galant, Gantz, Smotrich, Ben Gvir e resto da quadrilha herdeira. Os “genes” racistas e supremacistas de uns e outros são os mesmos. Nem mais nem menos. Já agora, o plural de kibbutz é kibbutzim, e não “kibutzes”, como a superficialidade bem-intencionada de MST inventa.

    Donde se conclui que MST continua com um problema grave de superficialidade e inconsistência, apesar da boa vontade que por vezes o move, e começo a duvidar de que algum dia consiga ultrapassá-lo.

  4. Nunca os dedos te doam. Pois, um antigo governante também garantiu que a Margem Sul do Tejo era um deserto. Felizmente ninguém decidiu instalar se por lá fazendo a desgraça que os sionistas fizeram.
    Realmente, desde a crueldade russa que seria maior que a de qualquer outro povo que eu achava que nada que viesse do MST me poderia surpreender.
    Mas esta de que Netanyahu e companhia, bem como o seu povo sedento de sangue palestiniano, trairam os autores da nakba também é forte.
    Israel continua, simplesmente a fazer o que fez desde a sua fundação. O que, segundo a Bíblia fez milénios atrás. Nada de novo, portanto. Apenas uma crueldade extrema.

    • Se um dia ficar sem dedos, amigo Whale, provavelmente irei teclar… com os cornos (pardon my French)! Ao estilo Ganesha, o conhecido deus de cabeça de elefante do hinduísmo, geralmente representado apenas com um dente. O outro, partido, segura-o na mão E porque tinha ele apenas um dente? De acordo com uma das inúmeras versões da sua vida, Ganesha, ao ouvir um dia declamar o poema épico Mahabarata, ficou tão entusiasmado que, querendo apontá-lo e não tendo na altura à mão nada para escrever, partiu o seu próprio dente e usou-o como caneta. Essa uma das razões por que, entre outras coisas, Ganesha é considerado o patrono das artes. Também o é dos comerciantes, que têm geralmente uma ou mais estatuetas dele para lhes dar sorte nos negócios.

  5. O que também convém ter em conta é que Portugal é dos poucos paises da Europa dita Ocidental e democrática onde ainda podemos ir escrevendo coisas como estas.
    Até um texto a dar uma no cravo e outra na ferradura como o do MST já lhe teria valido não sei quantos processos por antissemitismo, discurso de ódio e sei lá mais o que.
    Um blog como este já teria sido fechado ante os aplausos de muito boa gente e o editor preso.
    Nos talvez estivéssemos presos ou pelo menos sido multados por tudo quanto temos.
    Por esta altura as autoridades já estariam em campo e teriamos sido identificados com nome, morada e até número de calças.
    Nos Estados Unidos estudantes teem sido presos, ameaçados de que não conseguirão trabalho em lado nenhum, expulsos das instalacoes universitárias e pelo menos dois reitores já viram a porta da rua por se recusarem a dar todas as razões aos sionistas.
    Em paises como a Alemanha e a França qualquer ajuntamento de mais de tres a favor dos palestinianos e disperso a gás lacrimogeneo e bastonada, com grande número de feridos e detidos.
    Não sei o que os move. Não sei se é só o dinheiro sionista a falar ou se há medo de que os carrascos do kidom não se entretenham só a matar aqueles árabes sujos.
    O que de certeza sei é que os legítimos herdeiros dos autores da primeira nakba não estão só a matar palestinianos, sirios, libaneses e iranianos.
    Estão a matar o que resta da nossa liberdade e da nossa democracia.
    São unha com carne com a nossa extrema direita que, ao contrário dos velhos nazis, sabe o que lhe convém e é ferozmente pro Israelita.
    Escolheu como alvo os mesmos inimigos, ou seja, os muçulmanos quem quer que eles sejam.
    Um deputado de extrema direita holandês apresentou a sua demissão por se ter convertido ao islamismo.
    Por isso vão os pro israelitas chamar nazi ao diabo que os carregue porque os nazis de hoje são todos pro israelitas.
    Sabem bem o que lhes convém e ninguém quer ser vítima de um carro armadilhado ou levar um tiro nos cornos.
    Quanto a nós resta nos pelo menos esperar que, apesar dos papeloes protagonizados por alguns membros do Governo, o nosso país continue a ser um pequeno oásis de democracia.
    Onde pelo menos nos possamos manifestar na rua contra o genocídio sem apanhar da polícia, ser presos, processados e ainda por cima xingados de antissemita.
    Israel está a matar a nossa democracia e a nossa liberdade. Com a mesma facilidade com que mata palestinianos. Não nos esqueçamos disso.

  6. E num hospital de Nova Iorque uma enfermeira Palestiniana especializada em apoio a mães que perderam filhos na gravidez ou parto foi despedida por, ao receber um prémio ter no seu discurso falado nas maes que perdem filhos no genocídio de Gaza.
    E referido que os profissionais palestinianos sao pressionados a não expressar qualquer opinião para que os pro israelitas não se sintam “inseguros”
    Mas eles teem de gramar gente a gabar se de ter familiares e amigos nas Forças de Destruição de Israel e gente a passar mails com imagens de torturas e destruição provocada pela soldadesca. Sem que tenham qualquer direito a sentir se “inseguros”.
    O que é mais nojento no meio disto tudo é ver apoiantes do genocídio ainda por cima a fazer se de coitadinhos. Mas só o fazem porque há trastes que os deixam. Porque há trastes que se dão ao trabalho de despedir alguém por dizer o que está a vista de todos. Tenham vergonha no focinho.

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